Luiz Carlos Daólio - de
1955 a 1958 – 3° e 4° ginasial e colegial
1955 – Um prédio
cheirando a tinta
Novinho em folha. Estava no 3° ginasial. Nossa sala
de aula e estudo ficava no segundo andar, última à esquerda,
próxima à Biblioteca, janela para a quadra de basquete. A capela, a
ala dos padres, a ala das freiras, a lavanderia, as alas de estudo,
dormitório e refeitório estavam todas prontas. Os recreios, nem
tanto. As quadras de basquete e vôlei estavam sem o piso
definitivo, eram de terra. Na quadra de basquete, por exemplo, as
demarcações (linhas, círculo central, garrafão) eram feitas em
tijolo e de vez em quando a gente dava uma topada e lá ia parte da
sola do pé. Os galpões, central, dos maiores e dos médios estavam
no contra-piso. Futebol: só o campo de cima estava pronto. Acho que
a gruta ainda não tinha sido feita.
Por falar em piso ...
levei o único tapa na cara na minha vida
Aconteceu num daqueles dias em que tinham colocado o
novo piso nos campos de vôlei do lado dos médios. Para o
pessoal não pisar nessa área, tinham colocado uma tábua para
servir de ponte entre o pátio dos médios e o pátio central. Eu
devia ser dos médios, vinha vindo lá dos campos de futebol com um
grupo, conversando, entramos no pátio dos médios e fomos passar
para o pátio central. Eu entrei primeiro na tábua ali colocada e
quis fazer uma brincadeira com os outros retardando o passo. Não é
que aquele cidadão chamado Décio Maróstica me deu um tapa na cara!
O único na minha vida. E que fiz eu? Baixei a cabeça, guardei a
raiva comigo. Virtude? Covardia? Sangue de barata? Entenda como
quiser. E nunca mais tive um relacionamento aberto com ele, a cena
vinha sempre à minha cabeça.
Rotinas – diferenças e
semelhanças com relação a outros seminários
- Ginástica: raridade, o único seminário com ginástica matinal obrigatória e universal.
- Futebol ‘oficial’: em Sorocaba, eram de 5ª e domingo; aqui não, podíamos jogar todos os dias, no recreio das 15 horas. E havia outras atrações, basquete, por exemplo, e depois de um tempo, vôlei.
- Escala de banho: não havia, tomava-se geralmente após o recreio das 15 hs.
- 5as. Feiras: igual a todos os seminários, sem aulas, dia dedicado a (1) limpezas (Campinas); (2) retiros espirituais - todos; (3) saídas (Aparecida e Ipiranga); (4) estudos, sendo que o estudo após o almoço era ‘livre’, isto é, podia-se ler livros que não eram os livros didáticos (Sorocaba e Campinas).
- Trabalhar para as Missões: só em Sorocaba.
- Cáritas: só em Campinas recebíamos comemos aqueles queijos amarelos que vinham em galões de 5 litros. E as roupas. Tenho até hoje um calção que tirei de uma montanha de roupas vindas dos ‘steites’.
- Refeitório - cardápio semanal: em Sorocaba o cardápio era fixo, em Campinas não (acho).
- Dormitório: em Campinas, cameratas; lembranças dos ventos uivando nas venezianas nos dias de frio; em Sorocaba dormíamos mais com janelas abertas.
- Espiritualidade: esquema de orações na Capela idêntico – oração da manhã, meditação de meia hora, missa, oração depois do recreio do almoço, após o recreio da noite havia leitura espiritual e oração da noite.
- Limpezas: durante uma 5ª feira por mês éramos ‘convidados’ a fazer limpeza geral nas áreas de estudo, dormitórios e refeitório.
Por falar em limpeza ...
a mina, olha a mina, pessoal !!!
Não pensem que estamos falando de “meninas”,
não. É mina de minério. Foi num dia limpeza. Um dos irmãos
Fantinatti (apelidado de ‘baitaca’ – se fosse hoje, seria um
comportamento politicamente incorreto ou mesmo ‘bulying’)
encontrou um pacote de balas de leite embaixo de um dos armários
numa das cameratas dos médios e saiu gritando. E todo mundo avançou
e acabaram com as balas. De quem eram as balas? Minhas. Bobeei. Minha
mãe tinha trazido uma boa quantidade, guardei e fiquei matutando
como é que eu iria distribuir ... e antes disso me comeram todas
elas.
A caneta esferográfica
Foi aí que eu e outros ( talvez) conhecemos essa
novidade. Os primeiros modelos eram terríveis de usar. Tinham o
formato de um lápis comum, de madeira, tendo o grafite sido
substituído por um tubo de tinta que terminava num bico de metal com
uma minúscula espera. Só havia, inicialmente, tinta azul. O grande
problema é que precisávamos fazer força para a tinta aparecer e as
páginas dos cadernos ficavam todas enrugadas e côncavas. A solução
era colocar um papelão embaixo da folha onde estávamos escrevendo.
Ou então usar caneta tinteiro ... como eu, por exemplo.
O “toddy de baiano”
Naqueles anos havia um procedimento politicamente
incorreto com piadinhas contra os baianos. Por exemplo, “você sabe
o que é praia para baiano? É caminhão de areia”; “você sabe o
que é TV de baiano? É janela de trem”. Pois é, as irmãs que
cozinhavam para nós inventaram um composto de leite e farinha de
milho, adocicada, e serviam no café da tarde. Parecia um angu. E era
um tanto gostoso. De vez em quando esse composto apresentava-se um
pouco escurecido, talvez porque as irmãs teriam deixado um pouco
demais no fogo. Daí o apelido: “toddy de baiano”.
Futebol: nem meu Pai
gostou da minha exibição (1955)
Como homenagem ao dia das mães (acho), convidamos
nossos pais para vir e serem homenageados. Fazendo parte da festa
houve um jogo de futebol. Acho que eram médios contra médios.
Encaminhei meus pais até a “arquibancada” – aquele barranco
acima do campo de cima e os acomodei em cadeiras. E fui me aprontar.
Fui escalado como “alfo” direito de um dos times
(na época era assim, havia 2 beques e 3 alfos – em inglês,
“back”= atrás e “half” = meio). Essa coisa de lateral e ala
ainda não tinha sido descoberta. Minha função específica era
parar o ponta esquerda do outro time, um dos maiores craques da
época, o Valverde, sobrinho do Pe. Mateus. Não preciso dizer que
levei um suadouro ... Até meu pai, que nada entendia de futebol,
notou que não fui muito bem (digamos assim) ...
Gol contra e gol a favor
(1958)
Aniversário do Mons. Bruno. Trouxeram um time de
Mogi-Mirim. Fui escalado como “alfo” esquerdo. 0 x 0. Escanteio
contra nós. Fico postado junto à primeira trave. Eis que a bola vem
em minha direção e vou rebater ... e rebato para trás e o Osmar
não consegue pegar ... 1 x 0 para eles. Consequência: no intervalo,
o Pe. Vanin me mandou tomar banho. Até que foi bom para que eu
pudesse marcar um gol a favor. Explicando: deu mais tempo para eu me
preparar para o discurso que faria homenageando o Mons. Bruno,
durante o almoço. Gol a favor. Não foi assim, digamos, uma grande
peça literária, mas deu pro gasto!
Fui boleiro durante a
Copa de 1958
Boleiro era o cara encarregado de tomar conta da
bolaria, encher bolas, distribuí-las, recolhê-las, solicitar a
compra de novas e ... consertar as que furavam e tinham ainda
meia-vida. Descosturava-se um gomo da bola, retirava-se a bexiga para
fora, passava-se cola num pedaço de “michellin”, colocava-se
sobre o furo e costurava-se com barbante encerado com cera de abelha.
(Somente muito mais tarde vim a perceber que “michellin” era
marca famosa de pneus que fabricava esse tipo ‘esparadrapo’ para
colar em borracha, muito usado por consertadores de pneus). Ouvimos
alguns dos jogos por um alto falante colocado em cima da porta que
ligava o galpão dos maiores aos campos de trás.
A Copa e o Pe. Comblin
Lembro de uma tarde estar ouvindo um desses jogos em
companhia do Pe. Comblin, professor de química na ocasião. Tentava
ensinar-lhe uma tantas expressões em português. Lembro-me que ele
sempre sorria, talvez de pena de mim. Estávamos sentados naquele
pequeno barranco que ficava atrás do galpão dos maiores. E fiz
outra observação, no mínimo curiosa: ele usava, debaixo da batina,
apenas um tipo de bermuda ... coisa que nenhum padre brasileiro
fazia, todos usavam calças compridas. Então, ele era mais adaptado
ao calor dos trópicos do que os nacionais.
A Academia Literária
Era a maneira de treinar a fala em público. Recitar
poesias, escrever discursos, falar de improviso – o terror da
moçada. Eis 2 provas de minha atuação. A primeira, discurso sobre
Petróleo, última página com a data: 21 de maio de 1958.
Trabalho de crítica aos discursos do Paulo Nogueira
e do José Boteon, a pedido do Mons. Luis.
Falando dos padres ... e professores
O Grego e o Juramento dos
Padres
O Grego comentou que minhas crônicas estavam
interessantes. Mas esperava que um dia eu escrevesse algo assim mais
suculento, algo mais crítico sobre a vida de seminarista. Aí
lembrei que tinha uns cadernos antigos e, olha o que achei: o
primeiro exercício de português dado pelo Mons. Luis de Abreu –
fazer uma “descrição” – atenção para a data:
“Caderno de Português - Professor Mons. Luís de
Abreu
Exercício I – Descrição: Juramento de Fé
Dia 25 de fevereiro (de 1955).
São 19,30 horas. Estamos na capela, de pé. Que fazemos? Esperamos
pela chegada do Sr. Bispo que presidirá a uma função: o juramento
de fé dos Srs. Padres Professores.
Logo aparecem, primeiramente, os padres, todos de
roquete, em fila; o Sr. Bispo encontra-se no
fim da fila. A schola (cantorum)
entoa agora o “Tu és Petrus”, regida pelo vulgarmente conhecido
“Bacalhau” (poxa, quem seria esse
tal de bacalhau?)
O Sr. Bispo dirige-se ao altar, sobe os degraus e se
assenta em uma cadeira posta no supedâneo (uau!?),
virada para os seminaristas. Os padres, junto à mesa da comunhão,
logo começam uma oração em latim ... (...)
Deo Gratias”
“Pe. Mateus, manda os
meninos molharem as plantas que estão secas!”
Em todos os quartos dos padres havia telefones. O
Padre Mateus era nosso Ministro da Disciplina. Muito sério, muito
bravo. Cara fechada, sorriso difícil. Numa noite em que chovia a
cântaros, o maior toró de água, não é que o Padre Chiquinho
liga de madrugada para o Pe. Mateus para falar “manda os meninos
molharem as plantas que estão secas”. Ouvi essa história no
refeitório dos padres. Pe.Mateus quase pôs o Pe. Chiquinho a
correr.
Pe. Mateus e o “vento
sul” (na época do Diocesano)
Essa me contaram. Na época do Diocesano o pessoal ia
lavar o rosto e escovar os dentes, pela manhã, numa espécie de
“coxo” com várias torneiras. E havia ali uma janela que dava
para a rua. E o pessoal ficava escovando os dentes e olhando o
movimento da rua, colegiais passando, coisa e tal ... O Pe. Mateus
notou que havia uma grande procura pelas torneiras localizadas frente
à janela, percebeu a jogada e resolveu acabar com esse
‘voyaeurismo’. Mandou que ficasse fechada, todos os dias. E
avisou: “Mandei fechar porque ali bate um vento sul que pode fazer
mal pela manhã ...”
O dia em que Mons. Luís
de Abreu passou um “pito” em S. Paulo Apóstolo
As pregações do Mons. Luís de Abreu eram
impecáveis. Duravam entre 20 e 30 minutos. Ele postava-se de pé,
hirto, de olhos fechados, mão esquerda sobre o peito (pose
‘napoleônica’), a mão direita em gestos comedidos, português
castiço, corrente do relógio cebolão pendendo no peito. De vez em
quando consultava o relógio. Lembro que um dia, comentando um trecho
do Apóstolo Paulo que dizia “Combati o bom combate, mantive a fé”,
espinafrou esse apóstolo: onde se viu dizer “combati” (passado),
o combate deve ser constante, nunca se deve dizer que o combate já
terminou ... e coisas afins. Acho que disse isso por causa do seu
instinto guerreiro de ex-combatente da Revolução
Constitucionalista.
De vez em quanto ele recitava um verso sobre a
bandeira do Estado de São Paulo. Só me lembro das palavras
“bandeira de 13 listras, (forrando) o chão dos paulistas”.
Mons. Bruno e suas falhas
de memória
A memória de Mons. Bruno funcionava por associação.
O exemplo mais interessante: certo dia entrou no refeitório dos
padres e comentou que estava passando um filme bom na cidade. Mas não
conseguia lembrar o nome. Sabia que era um bicho e uma cor. Talvez
fosse leopardo amarelo? Aí o Pe. Vanin tentou ajudar: não seria “O
Professor Aloprado”? Um filme de Jerry Lewis, famoso comediante da
época. Não, era um bicho e uma cor. Final da história: “Pantera
Cor de Rosa”.
Cônego Luís de Campos e
suas técnicas didáticas
Ele tinha algumas “tiradas” que eram “batata”
(= certeza de acontecer) em determinados pontos de suas aulas,
principalmente de latim. Lembro destas:
- uma carta sucinta dos tempos latínicos:
“Mito tibi navem, prora pupique carentem”. A tradução literal
é: “Envio para você um navio, carente de proa e de popa”. E
daí, o que significa? “Ave”. Saudação como em “Ave, Caesar”.
O missivista enviou a palavra “navem”, sem a proa (sem o “n”)
e sem a popa (sem o “m) = ‘ave”. Hoje seria: viva, olá, oi.
- quando apresentava o verbo irregular “edere”,
que significa “comer”, ele vinha com esta expressão:
“mater tua mala burra est”. O verbo “est”, no caso, não é
do ver ser, mas sim do verbo “edere”. Tradução: “Sua mãe
come maçãs maduras”. (Mala = maçãs; burra = feminino plural
neutro do adjetivo burrus, burra, burrum = vermelhas)
- quando queria mostrar como não se pode
converter palavra por palavra sem olhar o significado de cada
palavra, escrevia na lousa: “Manduco me flumen illorum”. Em
latim, não quer dizer nada. Algum mal avisado quis transladar para o
latim a expressão “como eu me rio deles’ (= “como estou dando
risada dos caras”) e transpôs palavra por palavra: Como =
‘manduco’ (verbo comer), Rio = flúmen (rio, regato, curso
d’água). As palavras ‘me’ e ‘illorum’ estariam corretas.
- SOPA RALA: ele dizia que se você quisesse
esnobar seu latim numa refeição onde estariam servindo uma sopa bem
rala, quase só caldo, deveriam usar um dos versos de Virgílio em
seu poema Eneida: “Apparent rari nantes in gurgite vasto”.
Explicação: na guerra naval, um navio havia sido destruído e ...
“aparecem uns poucos nadando na vastidão do mar” – assim como
numa sopa rala aparecem raros vestígios de vegetais e de outros
ingredientes.
- das aulas de inglês: o Con. Luís, na tentativa de
fazer a gente ouvir e entender a língua inglesa, trazia uma vitrola
e uma coleção de discos com um curso de inglês produzido pela BBC
de Londres para os estrangeiros aprenderem. Só me lembro da primeira
frase: “Let me to present myself: Bernard Shaw”.
Como se chamava o livro de inglês adotado? “English
easily spoken”.
E como ele “amava” os ingleses ... ! E de vez em
quando discorria sobre Churchil e sua participação numa guerra
contra os bôeres (descendentes de holandeses da África do Sul).
O Salaro querendo enganar
o Pe. Senna
Tinha um colega, o Romeu Salaro, que nada entendia
das aulas do Pe. Sena e tentava enganar inocentemente o professor.
Como eu era um tanto bom em matemáticas, ele vinha conferir as
respostas dos exercícios. Qual a inocente estratégia? Fazia uns
cálculos todos escalafobéticos e colocava a resposta correta. E
discutia com o Pe. Senna, queria a todo custo que ele considerasse
corretas suas respostas, mesmo com os cálculos errados.
Pe. Senna me deu a única
“bomba” em exames finais da minha vida
Cosmografia. Um livrinho fininho, bem velhinho,
certamente bem desatualizadinho ... Bacana quando ele convidava a
gente para olhar as estrelas, de noite, lá no campo de futebol, com
um pequeno telescópio que ele tinha. “Aquela é Aldebarã, lá
está a constelação de Ursa Maior, Veja as crateras da Lua ...”
Aí vieram os exames finais. Naquele tempo não havia esses esquemas
de fechar as notas sem exames finais. Havia-os escritos e orais. Aí
ele veio no exame escrito com 2 questões apenas. Uma delas era a
opinião de um certo padre astrônomo lá do Observatório do
Vaticano (será que ainda existe?), sobre as manchas do sol. Essa
matéria era um rodapé de uma página. Como é que eu ia lembrar
disso? Tentei responder a outra ... enfim, NOTA 2. Me salvei depois
no exame oral.
Pe. Senna e o “ruído
das moedas em torno do altar”
Ouvi várias vezes, umas em aulas, outras em
conversas, uma citação que ele fazia de algum ilustre pensador
católico (quem seria, hein?) dizendo que “o maior escândalo na
igreja era o tilintar das moedas em torno do altar”. Sacramentos x
dinheiro!
Professor Wofgang
Frederic Seidel e Wagner
Professor de Física. Lei de Boyle-Mariotte e
quejandos. Um cara alto, magro, nariz pontudo que ficava vermelho
muito facilmente. Nós tínhamos algumas táticas para fazer os
professores divagarem e fazer o tempo passar mais rapidamente. Para
esse alemão, a tática era perguntar sobre suas “audiências”
musicais. Ele amava apaixonadamente a música clássica e,
principalmente, Wagner. Costumava-se ir até a Alemanha nos festivais
de Wagner no Teatro Beireuth. E fazia um ‘apostolado’ de música
clássica através de audiências: ia até uma cidade (por exemplo,
esteve em Amparo) e combinava com um clube (em Amparo, o Clube 8) a
apresentação de algumas peças musicais para um público convidado.
... e ele se desconsolava pelo pouco interesse despertado ...
Ele fazia Faculdade de Farmácia. Tentei achar na
internet e nada feito.