terça-feira, 10 de julho de 2012

Seminário 2 – SIC – Campinas


Luiz Carlos Daólio - de 1955 a 1958 – 3° e 4° ginasial e colegial

1955 – Um prédio cheirando a tinta
Novinho em folha. Estava no 3° ginasial. Nossa sala de aula e estudo ficava no segundo andar, última à esquerda, próxima à Biblioteca, janela para a quadra de basquete. A capela, a ala dos padres, a ala das freiras, a lavanderia, as alas de estudo, dormitório e refeitório estavam todas prontas. Os recreios, nem tanto. As quadras de basquete e vôlei estavam sem o piso definitivo, eram de terra. Na quadra de basquete, por exemplo, as demarcações (linhas, círculo central, garrafão) eram feitas em tijolo e de vez em quando a gente dava uma topada e lá ia parte da sola do pé. Os galpões, central, dos maiores e dos médios estavam no contra-piso. Futebol: só o campo de cima estava pronto. Acho que a gruta ainda não tinha sido feita.
Por falar em piso ... levei o único tapa na cara na minha vida
Aconteceu num daqueles dias em que tinham colocado o novo piso nos campos de vôlei do lado dos médios. Para o pessoal não pisar nessa área, tinham colocado uma tábua para servir de ponte entre o pátio dos médios e o pátio central. Eu devia ser dos médios, vinha vindo lá dos campos de futebol com um grupo, conversando, entramos no pátio dos médios e fomos passar para o pátio central. Eu entrei primeiro na tábua ali colocada e quis fazer uma brincadeira com os outros retardando o passo. Não é que aquele cidadão chamado Décio Maróstica me deu um tapa na cara! O único na minha vida. E que fiz eu? Baixei a cabeça, guardei a raiva comigo. Virtude? Covardia? Sangue de barata? Entenda como quiser. E nunca mais tive um relacionamento aberto com ele, a cena vinha sempre à minha cabeça.
Rotinas – diferenças e semelhanças com relação a outros seminários
  • Ginástica: raridade, o único seminário com ginástica matinal obrigatória e universal.
  • Futebol ‘oficial’: em Sorocaba, eram de 5ª e domingo; aqui não, podíamos jogar todos os dias, no recreio das 15 horas. E havia outras atrações, basquete, por exemplo, e depois de um tempo, vôlei.
  • Escala de banho: não havia, tomava-se geralmente após o recreio das 15 hs.
  • 5as. Feiras: igual a todos os seminários, sem aulas, dia dedicado a (1) limpezas (Campinas); (2) retiros espirituais - todos; (3) saídas (Aparecida e Ipiranga); (4) estudos, sendo que o estudo após o almoço era ‘livre’, isto é, podia-se ler livros que não eram os livros didáticos (Sorocaba e Campinas).
  • Trabalhar para as Missões: só em Sorocaba.
  • Cáritas: só em Campinas recebíamos comemos aqueles queijos amarelos que vinham em galões de 5 litros. E as roupas. Tenho até hoje um calção que tirei de uma montanha de roupas vindas dos ‘steites’.
  • Refeitório - cardápio semanal: em Sorocaba o cardápio era fixo, em Campinas não (acho).
  • Dormitório: em Campinas, cameratas; lembranças dos ventos uivando nas venezianas nos dias de frio; em Sorocaba dormíamos mais com janelas abertas.
  • Espiritualidade: esquema de orações na Capela idêntico – oração da manhã, meditação de meia hora, missa, oração depois do recreio do almoço, após o recreio da noite havia leitura espiritual e oração da noite.
  • Limpezas: durante uma 5ª feira por mês éramos ‘convidados’ a fazer limpeza geral nas áreas de estudo, dormitórios e refeitório.
Por falar em limpeza ... a mina, olha a mina, pessoal !!!
Não pensem que estamos falando de “meninas”, não. É mina de minério. Foi num dia limpeza. Um dos irmãos Fantinatti (apelidado de ‘baitaca’ – se fosse hoje, seria um comportamento politicamente incorreto ou mesmo ‘bulying’) encontrou um pacote de balas de leite embaixo de um dos armários numa das cameratas dos médios e saiu gritando. E todo mundo avançou e acabaram com as balas. De quem eram as balas? Minhas. Bobeei. Minha mãe tinha trazido uma boa quantidade, guardei e fiquei matutando como é que eu iria distribuir ... e antes disso me comeram todas elas.
A caneta esferográfica
Foi aí que eu e outros ( talvez) conhecemos essa novidade. Os primeiros modelos eram terríveis de usar. Tinham o formato de um lápis comum, de madeira, tendo o grafite sido substituído por um tubo de tinta que terminava num bico de metal com uma minúscula espera. Só havia, inicialmente, tinta azul. O grande problema é que precisávamos fazer força para a tinta aparecer e as páginas dos cadernos ficavam todas enrugadas e côncavas. A solução era colocar um papelão embaixo da folha onde estávamos escrevendo. Ou então usar caneta tinteiro ... como eu, por exemplo.
O “toddy de baiano”
Naqueles anos havia um procedimento politicamente incorreto com piadinhas contra os baianos. Por exemplo, “você sabe o que é praia para baiano? É caminhão de areia”; “você sabe o que é TV de baiano? É janela de trem”. Pois é, as irmãs que cozinhavam para nós inventaram um composto de leite e farinha de milho, adocicada, e serviam no café da tarde. Parecia um angu. E era um tanto gostoso. De vez em quando esse composto apresentava-se um pouco escurecido, talvez porque as irmãs teriam deixado um pouco demais no fogo. Daí o apelido: “toddy de baiano”.
Futebol: nem meu Pai gostou da minha exibição (1955)
Como homenagem ao dia das mães (acho), convidamos nossos pais para vir e serem homenageados. Fazendo parte da festa houve um jogo de futebol. Acho que eram médios contra médios. Encaminhei meus pais até a “arquibancada” – aquele barranco acima do campo de cima e os acomodei em cadeiras. E fui me aprontar.
Fui escalado como “alfo” direito de um dos times (na época era assim, havia 2 beques e 3 alfos – em inglês, “back”= atrás e “half” = meio). Essa coisa de lateral e ala ainda não tinha sido descoberta. Minha função específica era parar o ponta esquerda do outro time, um dos maiores craques da época, o Valverde, sobrinho do Pe. Mateus. Não preciso dizer que levei um suadouro ... Até meu pai, que nada entendia de futebol, notou que não fui muito bem (digamos assim) ...
Gol contra e gol a favor (1958)
Aniversário do Mons. Bruno. Trouxeram um time de Mogi-Mirim. Fui escalado como “alfo” esquerdo. 0 x 0. Escanteio contra nós. Fico postado junto à primeira trave. Eis que a bola vem em minha direção e vou rebater ... e rebato para trás e o Osmar não consegue pegar ... 1 x 0 para eles. Consequência: no intervalo, o Pe. Vanin me mandou tomar banho. Até que foi bom para que eu pudesse marcar um gol a favor. Explicando: deu mais tempo para eu me preparar para o discurso que faria homenageando o Mons. Bruno, durante o almoço. Gol a favor. Não foi assim, digamos, uma grande peça literária, mas deu pro gasto!
Fui boleiro durante a Copa de 1958
Boleiro era o cara encarregado de tomar conta da bolaria, encher bolas, distribuí-las, recolhê-las, solicitar a compra de novas e ... consertar as que furavam e tinham ainda meia-vida. Descosturava-se um gomo da bola, retirava-se a bexiga para fora, passava-se cola num pedaço de “michellin”, colocava-se sobre o furo e costurava-se com barbante encerado com cera de abelha. (Somente muito mais tarde vim a perceber que “michellin” era marca famosa de pneus que fabricava esse tipo ‘esparadrapo’ para colar em borracha, muito usado por consertadores de pneus). Ouvimos alguns dos jogos por um alto falante colocado em cima da porta que ligava o galpão dos maiores aos campos de trás.
A Copa e o Pe. Comblin
Lembro de uma tarde estar ouvindo um desses jogos em companhia do Pe. Comblin, professor de química na ocasião. Tentava ensinar-lhe uma tantas expressões em português. Lembro-me que ele sempre sorria, talvez de pena de mim. Estávamos sentados naquele pequeno barranco que ficava atrás do galpão dos maiores. E fiz outra observação, no mínimo curiosa: ele usava, debaixo da batina, apenas um tipo de bermuda ... coisa que nenhum padre brasileiro fazia, todos usavam calças compridas. Então, ele era mais adaptado ao calor dos trópicos do que os nacionais.
A Academia Literária
Era a maneira de treinar a fala em público. Recitar poesias, escrever discursos, falar de improviso – o terror da moçada. Eis 2 provas de minha atuação. A primeira, discurso sobre Petróleo, última página com a data: 21 de maio de 1958.
Trabalho de crítica aos discursos do Paulo Nogueira e do José Boteon, a pedido do Mons. Luis.
Falando dos padres ... e professores
O Grego e o Juramento dos Padres
O Grego comentou que minhas crônicas estavam interessantes. Mas esperava que um dia eu escrevesse algo assim mais suculento, algo mais crítico sobre a vida de seminarista. Aí lembrei que tinha uns cadernos antigos e, olha o que achei: o primeiro exercício de português dado pelo Mons. Luis de Abreu – fazer uma “descrição” – atenção para a data:
Caderno de Português - Professor Mons. Luís de Abreu
Exercício I – Descrição: Juramento de Fé
Dia 25 de fevereiro (de 1955). São 19,30 horas. Estamos na capela, de pé. Que fazemos? Esperamos pela chegada do Sr. Bispo que presidirá a uma função: o juramento de fé dos Srs. Padres Professores.
Logo aparecem, primeiramente, os padres, todos de roquete, em fila; o Sr. Bispo encontra-se no fim da fila. A schola (cantorum) entoa agora o “Tu és Petrus”, regida pelo vulgarmente conhecido “Bacalhau” (poxa, quem seria esse tal de bacalhau?)
O Sr. Bispo dirige-se ao altar, sobe os degraus e se assenta em uma cadeira posta no supedâneo (uau!?), virada para os seminaristas. Os padres, junto à mesa da comunhão, logo começam uma oração em latim ... (...)
Deo Gratias”
Pe. Mateus, manda os meninos molharem as plantas que estão secas!”
Em todos os quartos dos padres havia telefones. O Padre Mateus era nosso Ministro da Disciplina. Muito sério, muito bravo. Cara fechada, sorriso difícil. Numa noite em que chovia a cântaros, o maior toró de água, não é que o Padre Chiquinho liga de madrugada para o Pe. Mateus para falar “manda os meninos molharem as plantas que estão secas”. Ouvi essa história no refeitório dos padres. Pe.Mateus quase pôs o Pe. Chiquinho a correr.
Pe. Mateus e o “vento sul” (na época do Diocesano)
Essa me contaram. Na época do Diocesano o pessoal ia lavar o rosto e escovar os dentes, pela manhã, numa espécie de “coxo” com várias torneiras. E havia ali uma janela que dava para a rua. E o pessoal ficava escovando os dentes e olhando o movimento da rua, colegiais passando, coisa e tal ... O Pe. Mateus notou que havia uma grande procura pelas torneiras localizadas frente à janela, percebeu a jogada e resolveu acabar com esse ‘voyaeurismo’. Mandou que ficasse fechada, todos os dias. E avisou: “Mandei fechar porque ali bate um vento sul que pode fazer mal pela manhã ...”
O dia em que Mons. Luís de Abreu passou um “pito” em S. Paulo Apóstolo
As pregações do Mons. Luís de Abreu eram impecáveis. Duravam entre 20 e 30 minutos. Ele postava-se de pé, hirto, de olhos fechados, mão esquerda sobre o peito (pose ‘napoleônica’), a mão direita em gestos comedidos, português castiço, corrente do relógio cebolão pendendo no peito. De vez em quando consultava o relógio. Lembro que um dia, comentando um trecho do Apóstolo Paulo que dizia “Combati o bom combate, mantive a fé”, espinafrou esse apóstolo: onde se viu dizer “combati” (passado), o combate deve ser constante, nunca se deve dizer que o combate já terminou ... e coisas afins. Acho que disse isso por causa do seu instinto guerreiro de ex-combatente da Revolução Constitucionalista.
De vez em quanto ele recitava um verso sobre a bandeira do Estado de São Paulo. Só me lembro das palavras “bandeira de 13 listras, (forrando) o chão dos paulistas”.
Mons. Bruno e suas falhas de memória
A memória de Mons. Bruno funcionava por associação. O exemplo mais interessante: certo dia entrou no refeitório dos padres e comentou que estava passando um filme bom na cidade. Mas não conseguia lembrar o nome. Sabia que era um bicho e uma cor. Talvez fosse leopardo amarelo? Aí o Pe. Vanin tentou ajudar: não seria “O Professor Aloprado”? Um filme de Jerry Lewis, famoso comediante da época. Não, era um bicho e uma cor. Final da história: “Pantera Cor de Rosa”.
Cônego Luís de Campos e suas técnicas didáticas
Ele tinha algumas “tiradas” que eram “batata” (= certeza de acontecer) em determinados pontos de suas aulas, principalmente de latim. Lembro destas:
- uma carta sucinta dos tempos latínicos: “Mito tibi navem, prora pupique carentem”. A tradução literal é: “Envio para você um navio, carente de proa e de popa”. E daí, o que significa? “Ave”. Saudação como em “Ave, Caesar”. O missivista enviou a palavra “navem”, sem a proa (sem o “n”) e sem a popa (sem o “m) = ‘ave”. Hoje seria: viva, olá, oi.
- quando apresentava o verbo irregular “edere”, que significa “comer”, ele vinha com esta expressão: “mater tua mala burra est”. O verbo “est”, no caso, não é do ver ser, mas sim do verbo “edere”. Tradução: “Sua mãe come maçãs maduras”. (Mala = maçãs; burra = feminino plural neutro do adjetivo burrus, burra, burrum = vermelhas)
- quando queria mostrar como não se pode converter palavra por palavra sem olhar o significado de cada palavra, escrevia na lousa: “Manduco me flumen illorum”. Em latim, não quer dizer nada. Algum mal avisado quis transladar para o latim a expressão “como eu me rio deles’ (= “como estou dando risada dos caras”) e transpôs palavra por palavra: Como = ‘manduco’ (verbo comer), Rio = flúmen (rio, regato, curso d’água). As palavras ‘me’ e ‘illorum’ estariam corretas.
- SOPA RALA: ele dizia que se você quisesse esnobar seu latim numa refeição onde estariam servindo uma sopa bem rala, quase só caldo, deveriam usar um dos versos de Virgílio em seu poema Eneida: “Apparent rari nantes in gurgite vasto”. Explicação: na guerra naval, um navio havia sido destruído e ... “aparecem uns poucos nadando na vastidão do mar” – assim como numa sopa rala aparecem raros vestígios de vegetais e de outros ingredientes.
- das aulas de inglês: o Con. Luís, na tentativa de fazer a gente ouvir e entender a língua inglesa, trazia uma vitrola e uma coleção de discos com um curso de inglês produzido pela BBC de Londres para os estrangeiros aprenderem. Só me lembro da primeira frase: “Let me to present myself: Bernard Shaw”.
Como se chamava o livro de inglês adotado? “English easily spoken”.
E como ele “amava” os ingleses ... ! E de vez em quando discorria sobre Churchil e sua participação numa guerra contra os bôeres (descendentes de holandeses da África do Sul).
O Salaro querendo enganar o Pe. Senna
Tinha um colega, o Romeu Salaro, que nada entendia das aulas do Pe. Sena e tentava enganar inocentemente o professor. Como eu era um tanto bom em matemáticas, ele vinha conferir as respostas dos exercícios. Qual a inocente estratégia? Fazia uns cálculos todos escalafobéticos e colocava a resposta correta. E discutia com o Pe. Senna, queria a todo custo que ele considerasse corretas suas respostas, mesmo com os cálculos errados.
Pe. Senna me deu a única “bomba” em exames finais da minha vida
Cosmografia. Um livrinho fininho, bem velhinho, certamente bem desatualizadinho ... Bacana quando ele convidava a gente para olhar as estrelas, de noite, lá no campo de futebol, com um pequeno telescópio que ele tinha. “Aquela é Aldebarã, lá está a constelação de Ursa Maior, Veja as crateras da Lua ...” Aí vieram os exames finais. Naquele tempo não havia esses esquemas de fechar as notas sem exames finais. Havia-os escritos e orais. Aí ele veio no exame escrito com 2 questões apenas. Uma delas era a opinião de um certo padre astrônomo lá do Observatório do Vaticano (será que ainda existe?), sobre as manchas do sol. Essa matéria era um rodapé de uma página. Como é que eu ia lembrar disso? Tentei responder a outra ... enfim, NOTA 2. Me salvei depois no exame oral.
Pe. Senna e o “ruído das moedas em torno do altar”
Ouvi várias vezes, umas em aulas, outras em conversas, uma citação que ele fazia de algum ilustre pensador católico (quem seria, hein?) dizendo que “o maior escândalo na igreja era o tilintar das moedas em torno do altar”. Sacramentos x dinheiro!
Professor Wofgang Frederic Seidel e Wagner
Professor de Física. Lei de Boyle-Mariotte e quejandos. Um cara alto, magro, nariz pontudo que ficava vermelho muito facilmente. Nós tínhamos algumas táticas para fazer os professores divagarem e fazer o tempo passar mais rapidamente. Para esse alemão, a tática era perguntar sobre suas “audiências” musicais. Ele amava apaixonadamente a música clássica e, principalmente, Wagner. Costumava-se ir até a Alemanha nos festivais de Wagner no Teatro Beireuth. E fazia um ‘apostolado’ de música clássica através de audiências: ia até uma cidade (por exemplo, esteve em Amparo) e combinava com um clube (em Amparo, o Clube 8) a apresentação de algumas peças musicais para um público convidado. ... e ele se desconsolava pelo pouco interesse despertado ...
Ele fazia Faculdade de Farmácia. Tentei achar na internet e nada feito.